"vai Gaby, come um carangueijo!", com aquele tom de voz de cara macho e autoridade de um coronel.
"não, João, muito obrigada".
"mas por quê? não quer ou não gosta?".
"aah, na verdade eu...".
"porra, come Gaby!"
peguei uma patinha daquele bicho horroroso e fedido e coloquei na boca. até que era bom.
pode não parecer, mas o João gosta de mim. quer dizer, o cara é um ex-policial, totalmente fechado e emburrado. ninguém do trabalho conversa com ele e, os que conversam, o xingam por ele ser grosso. a testa está sempre enrugada, como quem fala "se me encher, eu soco". ar de cara macho. "o bom da ostra é pegar do mar e pôr na boca, quando ela ainda está se mexendo". comentário mais João impossível. no momento em que eu observava o João preparar os carangueijos, tirando-os vivos do isopor, pensei "essa garrinha do bicho deve arrancar o dedo de alguém. Jesus, quem é que põe a mão nisso?". o João põe. ele os tirava do isopor como se eles fossem de pelúcia. quando a água começou a ferver, fiquei com pena de vê-los se batendo na panela. soltei um "tadinhos...", susurrando. o João ouviu e rapidamente rebateu: "orra Gaby! é rango!". eu não sei se é possível acreditar no que eu vou dizer, mas o João tem um charme. sujeito diferente, estilo Chuck Norris, que se encontrasse na rua um orc, do Senhor dos Anéis, mandava ir a merda. e por alguma razão, ele se preocupa comigo. quer me proteger. "putz, João, e se eu ficar com sede?". ele diz: "Gaby (pausa). você está comigo", como que me dizendo que nada irá me faltar se depender dele. quando viu minha queimadura de sol no ombro, todo vermelho, deu um berro: "porra, Gaby! protetor solar, Gaby, pelo amor de Deus! eu tenho uma caixa de primeiros socorros, tem umas gosma lá que dá pra passar. eu vou pegar", sempre com aquele tom de macho. hoje, estava cheio de piada sobre o colega de trabalho que tem chulé. "aquele lá eu vou cortar o pé com uma motoserra! do jeito que fede o infeliz, deve ter chulé até no joelho!".
sujeito engraçado o João.
por trás disso, tem uma história.
parece cafona, mas quando paramos pra pensar no que alguém viveu, deixamos de elaborar qualquer tipo de julgamento. se o povo que o despreza, por ele ter esse jeitão mais azedo, compreendesse que ele não sabe se expressar por tanta porrada que levou na vida, talvez tivessem a paciência que eu tive e o conquistassem como eu conquistei.
sujeito profundo o João.