Vitória
Vitória não queria nada de mais. Ela nunca quis. Não acreditava tanto em pessoas, nem em felicidade plena. Acreditava em hobbies, redes de balanço, pavê de frutas e videogame.
A vida inteira ela ouviu que sua vida seria incrível, pois seu nome chamava conquistas. No começo, ela acreditava e aguardava ansiosa pelos sorrisos inesgotáveis, pelas coisas dando certo, pelos privilégios de ter um nome que trazia o sucesso. Depois de alguns anos, seu nome tornou-se um nome como qualquer outro. Um nome que apenas a denominava, que não fazia dela especial.
Vitória não sabia bem o que queria fazer com seus anos de adolescência. Não sabia se virava uma empresária rica e poderosa, se largava a faculdade para produzir camisetas caseiras e vender nas feirinhas, ou se comprava uma franquia do Mc Donald's. Ela não sabia dessas coisas. E parecia não ligar tanto.
Ela cultivava amizades. Normalmente, suas amigas a imitavam ou queriam ser como ela. Em outros casos, a invejavam e desejavam o pior para Vitória. Isso ela também nunca entendeu. Talvez se refletisse sobre os motivos de suas colegas para terem tais comportamentos, ela chegaria a alguma conclusão. Mas Vitória não queria. Sabia que quando descobrisse o que se passava de verdade na cabeça de suas colegas, daria de ombros; no máximo, num dia de TPM, se arrependeria de ter investigado. Vitória não procurava entender as amizades. Interpretava tudo de uma maneira qualquer. Pensava nas suas amigas como pessoas que ela precisava ter em sua vida, para que, quando sua mãe lhe perguntasse algo, Vitória pudesse responder que tinha amigas, que era normal como sua mãe sonhara. Mas a verdade era que não ligava muito para elas. Não queria fazer parte daquilo, nem se meter com quem se mete em tudo.
Ela ia simplesmente vivendo.
Gostava dos livros. Gostava de janelas. Gostava de observar formigas. Gostava de ouvir o que estava ao longe. Gostava de chuva e pantufas, não necessariamente num mesmo cenário. Às vezes chorava, às vezes não. Quando chorava, era ao ouvir música. Mas não qualquer uma. Apenas uma a fazia chorar de verdade, chorar doído, e ela se encolhia nas almofadas do quarto e se escondia do tempo, da casa, de todo o resto. Nunca contara para ninguém sobre isso.
Certa vez bateu em alguém.
Certa vez desfez uma cicatriz.
Certa vez desejou ser mais alta para alcançar uma estrela.
Pensava muito, é verdade. Mas falava pouco. Nem sempre as pessoas para quem falar lhe instigavam a vontade de puxar papo. Vitória não era tímida. Só não gostava de conversar com quem desconversava. Com quem se ouvia todo o tempo. Com quem repetia duas vezes a mesma história. A maioria fazia isso. A maioria que ela conhecia fazia isso.
Vitória às vezes sentia saudades. Às vezes sentia remorso. Às vezes sentia doçura.
Já pensara várias vezes em entrar em depressão para sair do neutro. Mas logo mudava de idéia. Ficar em depressão era tão chato... Ela preferia fazer um penteado diferente para ir a algum café com algum conhecido.
Quando sua colega Mônica escreveu em seu caderno, Vitória não compreendeu muito bem ao ler: "Viver em Vitória é a maior delas". Enrugou a testa e virou para trás, olhando para a colega sentada. Mônica sorriu.
No ônibus pensou sobre as palavras.
Logo as esqueceu.
Certa vez Vitória cresceu.
Certa vez Vitória não se considerou feliz.
Certa vez Vitória mudou uma idéia.
Depois disso, enjoou de viver. E se apaixonou.
Antes de o meu pai viajar para Florianópolis com a mulher (férias do trabalho e dos filhos), ele combinou conosco de um final de semana, o último que eles passariam na praia, nós irmos para Floripa e voltarmos com ele na segunda de carro.
Sexta-feira, dia 21, o nosso ônibus saía da rodoviária às 9:30 da manhã. Na quinta à noite, na hora de fazer a mala, eu tive a crise.
Eu não sei bem o que foi. Crise de sociedade, crise de irmão, crise de pouca roupa, crise de se achar feia, crise de sem-avô, crise de mãe que protege o irmão, crise de não-quero-perder-aula-pra-viajar, crise de cabelo, crise de trabalho sem salário, crise de tudo-está-uma-bosta-e-cansei-de-disfarçar-isso.
É só nas viagens para a praia que eu percebo como eu não tenho roupa de verão. Quando eu conto, ninguém acredita, mas eu não tenho shorts. Nenhum. Nem UM. Eu não tenho. Tenho saias, calça na canela, mas não tenho shorts. Comecei a separar as roupas pra levar e à medida que eu NÃO ia separando nada devido a minha falência de roupas de verão, fui ficando desesperada. Eu não tenho blusa sem manga, eu não tenho shorts, eu não tenho biquíni bonito. Eu nem uso biquínis bonitos! E isso começou a me deixar desesperada. Minha mãe entrou no quarto, ficou dando palpites e tudo piorou em escalas assustadoras. Quando percebi, eu estava com vontade de chorar, olhando para as minhas não-roupas de verão, para o meu corpo não-verão e para a minha mãe dizendo que queria ter comprado roupas de verão pra mim, mas eu quem não quis. Eu queria sair correndo. Pedi pra minha mãe parar de falar e me deixar sozinha. Ela saiu do quarto e eu chorei muito.
Tinha alguma coisa errada ali... Não era só a minha vida não-veraneia que estava desestruturada.
A verdade é que eu estava cansada das pessoas com quem eu convivia. O meu irmão, que não considera o que ninguém fala e inventa desculpas psicológicas para não fazer o que eu peço –
"Dudu, será que dá pra parar de tocar violão porque eu quero dormir?". "Ai, guria, que merda! Você está com ciúmes do violão! Na verdade, você tem uma carência inconsciente, misturado com ciúmes do instrumento porque blá blá blá...". Daí ele não pára de tocar, afinal, era só ciúmes da minha parte
*cara de bunda*.
Na cabeça dele, eu morro de ciúmes de cada ácaro que vive no carpete do quarto dele.
Fora a minha mãe, que sempre poupa o meu irmão de tudo e diz os absurdos cotidianos:
"Deixe, Gaby. Não se meta, Gaby. Não fale isso pro seu irmão, Gaby. Por que ele não pode tocar violão, Gaby? Deixa que eu lavo a louça, Gaby, não precisa mandar o seu irmão". Eu estava cheia disso também.
Somado a isso, eu não estava gostando do meu cargo de sem-avô, não estava gostando da ausência dele.
E claro, a minha crise sociedade, que permanece me incomodando.
Será que sou só eu que não suporta mais conhecer gente que acha lindo beber, que dorme com qualquer um, que vive de porre, que usa drogas e acha isso o máximo, que faz propaganda de que é louca e nasceu bêbada, que sai à noite pra comer gente, que aplaude os amigos alcoólatras, que associa o aproveitamento da vida à fazer cagadas e que gosta de levar os outros pro mesmo caminho? Eu não agüento mais pessoas assim. Não agüento mais meninos vazios, fúteis e superficiais. Não agüento mais meninas que só falam mal dos outros, que se vestem parecidas, com os mesmos cintos de franjinha, os saltos transparentes, os óculos em degradê e só se preocupam em catar homens incríveis. Gente grossa, que só fala de si, que vira o que você diz contra você. Pessoas mentirosas, pessoas que prometem e não cumprem, que não gostam de abraçar, que acham todo mundo feio quando comparado a si mesmo.
Eu queria
conviver com pessoas legais, que te fazem rir, que não ligam se você não se parece com alguém da Malhação, que não perguntam quantas vezes você beijou na balada. Pessoas diferentes, que abraçam, que gostam de tocar, que assumem o que fazem, que não tem vergonha de dizer que te adoram, que te ligam por nada, que fazem elogios, que mexem no seu cabelo, que falam dos problemas, que confiam, que não falam
de você, mas falam
pra você, que lêem e não acham idiota escrever cartas.
Eu viajei para Florianópolis arrasada. Eu não queria ir, eu não queria viajar com o meu irmão, eu não queria ele fingindo que não percebeu que eu estou puta com ele só para não perguntar o que houve, eu não queria ver praia sentindo vergonha de estar nela.
No hotel, quando chegamos, o rapaz que carrega as malas foi nos mostrar o lugar, apesar de nós já conhecermos há muito tempo. Eu estava tão desanimada, que dava depressão só de olhar pra minha cara. No momento em que entrávamos na região aberta da piscina, em direção aos chalés, eu virei para o lado, para o bar da piscina, e dei de cara
com um garoto que fez a façanha de me tirar a cara de bunda. Na mesma hora, eu olhei e ele olhou também. Olhar daqueles pesados, que te deixam meio sem graça. Eu não sei explicar, nem sei descrever o que tinha aquele garoto. Mas era alguma coisa legal. Muito legal. Você olhava pra ele e sentia vontade de abraçar. Ele era diferente, eu tinha
certeza que era. Peguei afeição por ele. Queria conversar, perguntar de onde ele era, investigar sobre as opiniões dele a respeito da possível guerra dos EUA e a respeito do clima. Olhei para o garoto com cara de quem nunca tinha visto. Porque, considerando os últimos tempos, eu nunca tinha visto mesmo.
Quer dizer, eu sei que ainda não tinha conversado com ele, por isso não podia estar certa sobre ele ser legal. Mas eu sabia, eu simplesmente sabia.
No primeiro dia, o vi algumas vezes e continuava olhando-o como se nunca tivesse visto. Eu sempre o via com um pessoal do hotel, uns garotos e uns caras que trabalhavam na recreação. Dava vontade de sorrir só de olhar para ele. Não sei, um jeito de quem sabe tratar as pessoas, de quem sabe conversar, de quem não presta atenção nas coisas ruins dos dias. Cara de futuro do nosso mundo. Eu queria conversar com ele.
No segundo dia o vi, mas pouco.
No terceiro, e último (domingo), ele foi à praia com a família e se instalou com as bagagens (guarda-sol, prancha, esteira...) do nosso lado. Mais tarde, voltamos para o hotel e fomos para a piscina. Meu pai lendo jornal, a mulher dele tomando sol e eu de bobeira na água. Deu um tempinho, ele chegou com a família. Tomou uma ducha e mergulhou na piscina. Ele ficava por perto, eu via que ele queria conversar. Mas o que eu ia falar? Fiquei por ali e só. Nada aconteceu.
À noite, fomos jantar fora. Na manhã de segunda nós íamos embora.
Na volta do jantar, eu e o meu irmão não queríamos ir dormir. Meu pai e a mulher dele foram para o quarto e nós dois ficamos no salão de jogos um pouco. Depois fomos andar pelo hotel, conhecer aqueles lugares escuros e cheios de cadeiras, onde nunca ninguém entra.
Na volta para a portaria, demos de cara com o garoto e o irmão. Eles estavam indo para o salão de jogos. Conseqüentemente, nós também.
Eu e o meu irmão jogávamos ping-pong, eles sinuca. Já era meia-noite, o hotel estava vazio. Eu prestava atenção nele conversando com o irmão, o jeito de ele falar, o som da voz. Voz feia, mas eu nem liguei. Meia-hora depois, mais ou menos, o irmão dele pediu uma bolinha emprestada. Eu quase morri de alegria. Respondi: "Olha, a gente não tem outra, mas se vocês quiserem, podem jogar com a gente".
Nós quatro ficamos conversando até às quatro da manhã.
E ele, o garoto que eu tinha pegado afeição, era tudo o que eu sabia que ele era. Durante todo o tempo, eu fiquei feliz. O nome dele era Felipe e o do irmão dele Rodrigo.
Lembrei do dia em que o vi no bar da piscina. Eu sempre soube que o Felipe era incrível.
Ele me fez rir, me olhava nos olhos, me tratava como se eu fosse a garota mais linda do mundo. E era querido, inteligente e não fumava, nem bebia, nem tentava se mostrar com algo que ele poderia ter em vantagem sobre mim. O olho dele era cor de mel. Tinha cabelo liso, nos ombros, de cor castanho claro. Ele era tão bonito...
Ele dizia: "eu sempre te via na piscina. Você foi à praia com a sua família hoje, não foi? Eu vi você".
No outro dia, nos despedimos no café. Peguei e-mail e fomos embora.
O Felipe não faz idéia, mas ele salvou a minha vida. A preocupação dele em me fazer sorrir, o jeito tímido de me abraçar na hora de dar tchau, sorrindo o tempo todo e me olhando de canto de olho.
Que alívio... Ainda há esperança.