XuCruTinho
sábado, fevereiro 15, 2003
 

Como dizer isso...
Meu avô morreu. No dia 10 de fevereiro de 2003, às 23:30. Que merda.
Eu e minha mãe saímos de madrugada pra ver toda a papelada, assim que o pessoal do hospital telefonou avisando do falecimento. Eu queria participar de tudo, queria estar em todos os processos burocráticos, eu queria entender o que era preciso fazer para que meu avô pudesse morrer direitinho. E queria checar se tudo iria ser feito como deveria.
Mas me surpreendi com a maneira comercial que as pessoas do ramo tratam a morte dos outros. Em todos os momentos, em todos os lugares que nós estivemos, alguém usou a nossa dor como cartão de crédito. "Ele merecia o melhor". Claro, então leve o caixão de 3.800 reais. "O homem do convênio de luto disse pra vocês comprarem o caixão mais barato? Ele não pode decidir por vocês, olhem este caixão aqui, bem mais bonito, material melhor...". Ninguém liga se o seu ente querido morreu. Eles só querem saber como ele será enterrado e preparado pra isso. E quanto isso irá custar.
A sua angústia acaba se perdendo neste processo. Você acaba esquecendo, por algumas horas, que o seu vovô amado morreu e que você nunca mais vai vê-lo. O sentimento é substituído pela nítida sensação de que você saiu às compras.
Depois de uns 30 papéis assinados, nós fomos à casa da minha avó, aguardar a liberação do corpo. Era tão esquisito... Eu me sentia anestesiada. Não parecia ser quase 3 da manhã, não parecia que os assuntos carregavam um "motivo de falecimento", não parecia que o meu avô não morava mais ali e em nenhum outro lugar.
Ninguém estava chorando. Quando o homem encarregado da arrumação do velório ligou, nós fomos pra capela. Era 3:15.
Eu, que até ali estava me sentindo forte, fiquei aterrorizada. Eu não queria entrar na capela, não queria ver o caixão com o meu avô dentro.
Respirei fundo e dei um passo. Havia um cheiro por todo o lugar, um cheiro de flores, de cemitério, algo fúnebre. Meu avô estava deitado, coberto de flores artificiais até a cintura, com as bochechas arredondadas por causa do algodão dentro da boca e os lábios colados com alguma cola para defuntos. E o cheiro, aquele cheiro estranho, aquele cheiro que dizia que meu avô estava morto.
Meus lábios começaram a tremer. Como quando você sente um frio impossível de fazer passar. Eu quis sair de lá. Minha mãe segurou a mão dele e chorou. Eu tive nojo, eu tive medo. Aquele não era o meu vovô. O que cantava pra mim, o que penteava o meu cabelo com o pentinho de 1,99 que carregava no bolso da calça. Aquilo era um boneco de cera, as mãos inchadas pareciam borracha, um corpo que cheirava a túmulo.
Então eu chorei. Chorei por ser daquele jeito, chorei por meu vô ter se tornado algo que me assustava, chorei por terem colocado algodão em sua boca, chorei por ser aquele o último cheiro que eu sentiria dele. E chorei por acreditar na estúpida possibilidade de que ele levantaria dali e as coisas voltariam ao normal.
Tudo era tão mórbido. Eu custava a crer que a morte do meu avô tinha que ser notabilizada daquele jeito. E com aquele cheiro que saía dele. Não era aquele cheiro que eu queria que tivesse.
A madrugada passei lá. Consegui me acostumar com o caixão e já associava o corpo deitado nele com o meu avô. E peguei amor por ele novamente.
Passei a mão na testa. Estava tão gelada e as bochechas moles. Mas não me importei. Eu queria beija-lo, mas tive medo de a morte ter um gosto. Tive medo de carregar o sabor comigo pelo resto da vida. E chorei novamente, de saudades e de medo de não supera-la nunca.
As pessoas começaram a chegar de manhã. Vinham me abraçar e dizer o quanto sentiam, mas pra mim era como se narrassem uma receita de bolo. Soava inútil, soava idiota, soava sem sentido. Eu sentia muito, eles não!
A minha cabeça estava confusa. Eu queria lembrar de coisas sobre o meu avô, queria rever situações que passei com ele, mas nada vinha! Eu não conseguia pensar no passado. Só chorava sabendo da ausência do meu vovô no futuro.
Doía tanto. Meu Deus, doía demais! Eu chorava, as pessoas vinham me dizer que eu deveria ver o lado bom, afinal, ele estava finalmente descansando. Mas eu não conseguia! O caixão, o cheiro horripilante, nada daquilo poderia ter um lado bom! Meu avô estava morto! E eu o queria de volta! Eu queria ouvir as histórias dele sobre o lobisomem que ele jurava ter visto quando jovem, eu queria de volta as tardes em que ele fazia canjica, eu queria os almoços na minha casa, eu queria que ele me chamasse de "Gabyzinha do Vovô" de novo! Isso tudo era meu, estava dentro de mim, dentro da minha vida! Não podiam ter tirado de mim! Eu queria o meu vovô João de volta!
É tão agressivo... O meu avô esteve comigo por 20 anos. Me fazendo feliz por 20 anos. Como eu devo de repente aceitar que ele não vai mais estar na minha vida? Como eu vou fazer pra entender que ele não pode mais estar comigo? Pra sempre!
Acabei direcionando todo o meu amor por ele, para o caixão. Eu não saía do lado dele, eu não largava mais da mão gelada e até acostumei com o cheiro pavoroso. Eu só queria o meu avô...
O sentimento de perda e a saudade tomam conta de todos os outros sentimentos que você poderia estar sentindo. Você quer levar um pedaço da roupa do morto pra casa, você quer tirar uma foto pra guardar, você ama e adora aquele defunto com todas as suas forças e não quer mais que o tirem dali, não quer que o enterrem.
Saía da capela às vezes pra tomar um ar. E acabava esquecendo por alguns segundos que usava roupa preta não para parecer mais magra. Quando voltava e via o caixão, era como se meu avô tivesse morrido de novo. Como se tivessem acabado de me contar novamente.
O velório e o enterro foram uma maratona. Cheguei em casa no dia 11, às seis e meia da tarde. Dormi com Hipoglós sob os olhos e nas laterais do nariz. As lágrimas em excesso deixaram o meu rosto todo assado.
Nessa noite, sonhei com o caixão e o meu vô dentro dele. Acordei com medo. Mas pelo menos, as lembranças sobre ele voltaram. E até consegui rir do fato de o pessoal da funerária ter organizado um lanche pro velório de pão com presunto.

Pela primeira vez na minha vida, eu não tive vergonha de chorar na frente dos outros.

Hoje, dia 14 de fevereiro, eu estou me sentindo bem. Às vezes dá uma tristeza profunda, que faz minha garganta arder. Daí passa. Eu nunca vou me esquecer daquele pentinho de 1,99... E nunca vou esquecer do jeitinho alegre e quietinho que ele foi mudando a vida da nossa família.
É difícil entender que todo mundo morre quando uma das pessoas mais lindas e especiais é tirada da sua vida.


 
Em 100% das vezes em que perguntam meu nome e eu digo que é Gabriela, ouço um “Gabriela? Cravo e canela?”, seguido de uma risada. E todas estas pessoas realmente acreditam que a piadinha é super original. Se eu te chamar de jaguara é porque gosto de você. Jesus é tudo pra mim.

Nome:
Local: Brazil

Anos se passaram, Gaby é jornalista formada, locutora de rádio, e continua molhando o pão no Nescau. Sou adepta do regime eterno, ainda tenho problemas sérios para comer de palitinho e fico levemente ofendida com a careta que as pessoas fazem quando eu conto que tenho um gato e ele se chama Xaninho. “Xaninho?? Que nome é esse?”. Um dos meus hobbies é gente esquisita. Eu adoro prestar atenção na história delas. Tenho medo do orkut. E de mariposas peludas. Ui. Eu costumo sonhar com pessoas famosas. Já sonhei que o Eminem vendia perfumes, que o Keanu Reeves estudava comigo e pegava um ônibus chamado “Vila Adidas” para voltar pra casa e que o Bon Jovi era meu melhor amigo. Eu gosto muito de torta de limão.

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