No exato momento em que o seu irmão te dá a notícia de que está saindo de casa, tudo o que você tem a dizer é que apóia. Afinal, quando ele te procurou, foi pedindo por apoio. Aí o que você faz? Faz aquela cara de psicóloga freudiana, que compreende todas as atitudes dele (fuga dos problemas, busca pela mãe, sei lá eu o que) e sabe exatamente de onde vem a decisão. Sabe que ele está em busca do seu eu, seja lá onde ele tenha perdido, entende que ele não tem maturidade o suficiente para lidar com os problemas de convivência com a sua mãe e que preferiu optar pela migração.
Mas sei lá, você é uma irmã madura, você não vai sair caminhando pela sala da casa, discorrendo sobre os motivos dele, como se o que se passa no inconsciente do seu irmão fosse 1) novidade pra ele e 2) argumento forte para convencê-lo a refletir mais profundamente a escolha. Não é o caso. O certo é oferecer o que ele veio buscar, que é aquele apoio, aquela compreensão de irmã que também sente vontade de migrar da casa da mamãe e procurar um lugarzinho pra chamar de seu. Vocês debatem o assunto, conversam, você até arrisca apontar alguns pontos de vista, mas nada muito agressivo ou autoritário. Tudo muito maduro, a lá irmãzona-cabeça-aberta-que-quer-ver-o-irmãozinho-feliz.
Até que chega o dia da mudança.
Sinceramente, você achou que ia ser moleza. Por favor, milhares de irmãos deixam suas casas todos os dias no país inteiro, é nor-mal. Quer dizer, irmãos saem de casa. É praticamente inerente: eles saem de casa e vão morar com amigos em repúblicas sujas, em que o cenário é sempre aquele da pia entrochada de louça e cuecas nos abajures e nas maçanetas das portas. Aí nos finais de semana, eles voltam para a casa da mãe almoçar macarronada com almôndegas.
Mas deixa eu te contar como é a sensação. Não é nada científico ou estatístico. É doído pra burro. Se eu não fosse cristã, eu diria que é doído pra caralho.
A cena do seu irmão pegando as malas, os travesseiros, as roupas de carregar no cabide, o videogame... Beira o pós-guerra. Só dá você lá, esticada no chão, entre os mortos e feridos, com uma puta fratura exposta, berrando enquanto se contorce: "não o levem, pelo amor de Deus, eu amo o meu irmão! Me levem no lugar dele". É patético. Porque você aprendeu (não com os seus pais, obviamente, mas com a parcela psicopata da sociedade) que irmãos não servem para serem amados. Você não pode sair por aí declarando que ama o seu irmão, o que por anos você chamou de pentelho. É cafona, é brega, é como dizer que está afim do seu tio. A sua mãe ter espasmos de choro e depressão é totalmente aceitável, ela é a mãe, a que está perdendo um filho. E quem não conhece a saga da-mãe-que-perdeu-um-filho. É milenar, universal e remete à toda uma cultura de um povo, de nações inteiras. Agora a saga da-irmã-que-perdeu-um-irmão, dessa poucos ouviram falar. É um tabu. Por causa disso, o seu irmão deixa a sua casa e você não dá um pio. A sensação é de que ele morreu. O que também é patético.
Aí então, em uma conversa reveladora com a sua mãe enquanto ela refoga os quiabos, você acaba dando uma cedida e se deixa admitir que você ama aquele orelhudo, que está com vontade de socar aqueles amigos imbecis que o levaram embora e que ele vai fazer uma falta do caralho, porque a essas alturas você já está até falando palavrões.
Claro que não é o caso de ficar enobrecendo cada instante que vocês passaram juntos ou ficar lembrando com nostalgia todas as brigas que vocês tiveram pelo iogurte sabor salada de frutas da bandeja que sua mãe comprou. Mas é inevitável ficar lembrando do que vocês vão deixar de fazer juntos, com aquela sensação de merda-eu-vou-ser-menos-feliz-sem-isso. É a ordem natural das coisas porque o ser humano, todos eles, tem um pezinho na cafonice. E adora se sentir meio Maria do Bairro.
O bom do fator Maria do Bairro é que ele vem acompanhado de instinto de sobrevivência. Você acostuma. Na verdade, não tem segredo: você respira fundo, olha pra frente e toca a vida.

Agora, é caprichar na macarronada com almôndegas.  ¶ 12:33 AM